Zona de desconforto, de Lindevania Martins

Zona de desconforto é o segundo livro de contos da Lindevania Martins vencedor do prêmio Benfazeja — editora que publica o livro aqui no Brasil. Sempre considerei mais difícil falar a respeito de algo que gosto muito, por isso não será uma tarefa fácil definir os contos presentes nessa obra, pois Zona de desconforto entrou, facilmente, para minha lista de melhores leituras realizadas esse ano e de melhores livros de contos que li na vida.

Uma sensação comum durante a leitura de contos é a de que faltou algo e que aquela história poderia (ou deveria) continuar por mais algumas páginas. Mas com a maioria dos contos desse livro isso não acontece. Eles são exatamente o que precisavam ser; entregam o necessário ao leitor, nem mais, nem menos: o essencial.


O livro é composto por oito contos que aparecem na seguinte ordem: Zona de desconforto, conto que abre o livro e que dá título a obra, traz uma história que nos deixa com um imenso aperto no peito ao retratar um fato atroz tão presente em nossa sociedade. A realidade de pessoas que deixam suas casas para tentar uma vida melhor em outra cidade, carregando sonhos e esperança de um recomeço, mas, muitas vezes, se deparam como uma realidade ainda mais cruel que a que deixaram para trás.


— Quem sentiria tua falta? Fiquei calada. Mas queria lhe gritar que mamãe sentiria minha falta. Que mamãe se importava comigo. Que ela havia chorado muito ao me ver partir. Mamãe chorou tanto que suas lágrimas eram demais para uma filha só. Mamãe chorou tanto que pensei que ela chorava por todas as quatro filhas que partiram antes de mim, as filhas das quais ela jamais tivera notícias, embora sempre dissesse, querendo acreditar: — Devem estar bem! Notícia ruim chega depressa.
(Trecho do conto Zona de desconforto)

O segundo conto, Tudo vermelho, foi bastante surpreendente. É uma história sobre dominação, submissão, vingança e mágoa que nos mostra como pode ser difícil seguir em frente depois de certos traumas. Querida mamãe vem na sequência e com ele percebemos como amor e afeto não são sentimentos voluntários; exige entrega, doação, dedicação. Algo a ser cultivado constantemente.

No quarto conto temos mais uma história surpreendente, intitulado de O número perfeito onde percebemos certas características do ser humano que, muitas vezes, queremos acreditar que não existem; como muitas vezes calculamos nossas ações por motivos nada nobres. O quinto conto, Retrato de família, foi o mais arrebatador, pois retrata as relações familiares de forma tão pungente que é improvável sair ilesa de sua leitura.

Naquela casa, todo dia, se comia o pão empedrado do dia anterior. Todo dia, naquela casa, se rememoravam as amarguras sem fim do dia anterior. Quaisquer palavras, quaisquer que fossem, nunca bastavam se não eram ditas com dentes cerrados e mãos em punho. Nunca se disse uma coisa querendo dizer outra. Era sempre atingir o nervo que interessava. E nós entramos naquele jogo sem nunca nos perguntarmos se poderíamos fazer diferente do que aqueles dois faziam, sermos outra coisa que não lâmina, que não tiro, que não veneno. Atirávamos dardos entre nós, entre os irmãos, e nos feríamos reciprocamente, tanto quanto os pais o faziam. Cortes profundos na alma.
(Trecho do conto Retrato de família)
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A parede de vidro, sexto conto, começou como uma história que eu pensei que não me agradaria tanto, mas ela se transforma e acabei encontrando nesse conto a história com que mais me identifiquei nesse livro. Enxergamos como muitas vezes nos sujeitamos e aceitamos situações que nos machucam em relacionamentos amorosos por ainda não sabermos como partir. Ficar ou partir são decisões que nos exige muita coragem. Em contrapartida o sétimo conto, Virulência, foi o que menos me identifiquei. Por fim, o oitavo conto, O flagrante, traz um tom cômico ao nos apresentar um acontecimento comum, porém com uma reação inusitada do personagem.

Defendo e acredito na necessidade de permitirmos que a Literatura nos tire da nossa zona de conforto e nos coloque em contato com realidades diferentes da que pertencemos. Os contos desse livros não nos transportam para um mundo fantástico com criaturas místicas; mas nos transporta e nos convida a olhar mais profundamente para nós mesmos e para os outros com quem convivemos diariamente enfrentando situações que muitas vezes ignoramos e preferimos não enxergar.

O que a autora nos proporciona com esses contos é uma imersão devastadora e transformadora no mais íntimo do nosso ser. Somos convidados a entrar em contato com os desejos e pensamentos mais íntimos do ser humano, e como qualquer experiência transformadora, raramente será leve. Em cada conto recebemos um tapa na cara e um abrir de olhos necessário. O título não poderia ser mais adequado, pois a autora nos conta histórias necessárias, porém incômodas que nos tiram, sem dúvidas, do nosso lugar comum.


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